Como Solo Leveling Mudou Os Protagonistas
ANTES DE SOLO LEVELING…
Você se recorda que, até pouco tempo, a maioria dos protagonistas de shonen sorriam praticamente o tempo inteiro?
Goku, Luffy, Seiya, Gon, Yusuke, Naruto… Eles estavam sempre lá: mostrando todos os dentes, comendo quantidades absurdas de comida, sendo gentis com as pessoas ao seu redor, mantendo uma visão otimista das coisas e colocando a vida de seus amigos acima da própria.
Mas o que mudou de uns tempos para cá? E por que já não vemos esse tipo de protagonista com tanta frequência quanto antigamente?
Bem, na verdade não é que não vemos, mas grande parte desses personagens seguiam convenções que ressoavam com a época em que eles foram escritos.
Isso significa que, décadas atrás, em meados dos anos 80, 90 e 2000 — no auge de mangás como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, One Piece, Yu Yu Hakusho, Hunter x Hunter e Naruto —, havia essa sensação de que o futuro traria algo melhor, então personagens como Goku e companhia ecoavam o mesmo tipo de otimismo das pessoas, com sua esperança num amanhã melhor e mais fé na humanidade.
Todavia, parece que esse futuro chegou e, afinal, ele é bem diferente do que se imaginava.
NOS TEMPOS DE HOJE…
Atualmente, a sensação é a de que vivemos num tempo de desesperança: falta dinheiro para a maioria das pessoas comprarem uma boa moradia, um carro próprio ou pagar um plano de saúde digno; trabalhando em empregos que sugam toda a sua vitalidade enquanto ela é cobrada a produzir cada vez mais e mais por aquele chefe sacana que paga uma merreca de salário.
Nos dias de hoje, as pessoas estão esgotadas física e mentalmente, e esse zeitgeist (o espírito dos tempos atuais) também se reflete no tipo de história que um leitor está disposto a ler.
Se antes o sorriso e a gentileza de um protagonista demonstrava uma esperança inconsciente (e até ingênua) num futuro melhor, a frieza e a individualidade mostram o estado de espírito que consome a vontade das pessoas no presente.
VAMOS POR PARTES
Solo Leveling não é bem a primeira história em que encontramos um protagonista sombrio. Podemos citar exemplos como Death Note, Code Geass, Berserk, Classroom of the Elite, Attack on Titan, Tokyo Ghoul, etc., então o que torna Sung Jin-woo tão diferente dos persoangens principais dessas obras?
Para começar, o arquétipo do underdog é um dos mais interessantes de se acompanhar numa história cujo tema principal seja a evolução do protagonista. Esse tipo de personagem, basicamente, é aquele que parece fraco e subestimado por todos, porém, no final das contas, mostra-se como alguém bastante poderoso.
No caso do protagonista de Solo Leveling, tínhamos alguém descrito como o Caçador mais fraco daquele mundo, sendo obrigado a lutar e arriscar sua vida todos os dias nas caçadas para sustentar sua família e pagar as despesas de sua mãe doente.
Desse modo, Sung Jin-woo é colocado como alguém desiludido com a própria vida — ganha uma merreca num trabalho de merda em que precisa arriscar seu pescoço diariamente, assim como a maioria de nós fazemos todos os dias. É desse modo que desenvolvemos simpatia pelo protagonista de Solo Leveling e ele se aproxima de seus leitores.
Após um evento traumático, Sung Jin-woo consegue o poder de evoluir de nível através de um Sistema que quantifica essa evolução, como se sua vida tivesse se transformado num jogo; gamificando a sua ascensão como o Caçador mais fraco para o mais poderoso daquele universo, porém, em consequência disso, ele também muda de personalidade.
De início, isso se desenrola de maneira bastante interessante. É satisfatório acompanhar um sujeito impotente perante a sociedade — alguém que é “só mais um na multidão” — ascender de forma tão absurda que consegue passar por cima de todas as regras, de todas as leis e causar terror através de um simples olhar ou de uma simples palavra como “Ergam-se”. Quem não queria ser como o Sung Jin-woo, não é mesmo? Ou até mesmo criar um protagonista como ele, mas será que é mesmo tão fácil escrever um personagem assim?
AS IMPLICAÇÕES DE UMA OBRA DE ASCENSÃO (OU CULTIVO, SE PREFERIR)
Como dito anteriormente, Solo Leveling nos ofereceu mais uma história com protagonista sombrio, mas o fato de se tornar o mais poderoso do mundo; de fazer tudo o que quiser sem derramar uma gota de suor, dando ordens para seu exército de sombras e derrotando seus inimigos sem sequer tirar as mãos dos bolsos, transformou Sung Jin-woo num conceito diferente de personagem cujo termo eu mesmo cunhei: o protagonista “Edgy Chad ”.
Dentro da internet, Chad é uma gíria usada para designar um homem confiante, atraente e atlético, geralmente associado ao estereótipo do “Macho Alfa”, enquanto “Edgy” se refere a alguém que passa uma vibe sombria. Logo, a junção desses dois termos significaria um personagem misterioso, com força sobre-humana e uma confiança que cria uma figura esteticamente atraente, capaz de cativar leitores em busca de histórias de poder e superação para suportar a própria realidade massacrante do dia a dia.
Mas até que ponto esse tipo de protagonista consegue deixar uma história interessante? Será que não chega um momento em que toda essa aura de invencibilidade — diferentemente dos protagonistas dos shonens mais comuns — não compromete a qualidade da narrativa a longo prazo?
A resposta é sim e não.
Um dos principais desafios de se trabalhar com um protagonista excessivamente poderoso e que demonstra poucas emoções é o distanciamento que ele cria com o leitor, principalmente se estivermos falando de empatia.
Sim, no início é bastante emocionante acompanhar toda a evolução da força do protagonista, mas a falta de vulnerabilidade e a aparente indiferença do personagem podem trocar a sensação de novidade pela previsibilidade. À medida que a história avança e o protagonista acumula cada vez mais poder, essa tendência se intensifica, transformando um personagem que antes demonstrava suas emoções numa figura monossilábica e blasé, e que está presa a essa estagnação emocional de propósito, pois qualquer intensidade comprometeria a pose de “fodão” que foi construída pelo autor.
Pense: se o protagonista é capaz de superar qualquer desafio com facilidade, os conflitos perdem o impacto na história e a sensação de perigo diminui. A ausência de momentos de fraqueza ou de dúvida podem tornar o personagem unidimensional e, consequentemente, tornar a história menos envolvente.
O DILEMA DO AUTOR
Dessa forma, outro aspecto importante a ser considerado quando um escritor deseja criar um protagonista frio e calculista como Sung Jin-woo é a pressão que ele sente em manter essa aura de invencibilidade sobre o personagem.
A tentativa de preservar essa pose de superioridade pode obrigar o autor a criar soluções pouco criativas para os desafios que serão apresentados ao longo do enredo. Do mesmo modo, a necessidade de se criar vilões cada vez mais poderosos e situações igualmente extremas pode inutilizar o Power Scaling da história, comprometendo a coerência da narrativa.
Além do mais, a dificuldade de criar conflitos que realmente ameacem o protagonista leva à estagnação do enredo, pois, se ele sempre vence com facilidade, todos os inimigos viram “buchas”, resultando numa anulação da sensação de progresso, tanto narrativo quanto de personagem.
AS CONSEQUÊNCIAS NARRATIVAS
Falando de modo pessoal, lembro-me que, encantado pela leitura de Solo Leveling, comecei a escrever uma novel em que o meu protagonista possuía o mesmo comportamento “edgy”, frio e calculista do Sung Jin-woo. Contudo, com o avançar da trama, notei que estava cada vez mais difícil de desenvolver desafios interessantes sem ferir aquela aura de fodão que eu havia desenvolvido para o personagem.
Naquele momento, percebi que eu não sabia mais para onde levaria a história sem deixar as coisas fáceis demais para um protagonista tão poderoso, tampouco que conflitos internos eu poderia explorar, já que ele estava todo frio e sem emoções.
A BUSCA POR EQUILÍBRIO É FUNDAMENTAL
Assim sendo, meu conselho para os autores de protagonistas sombrios e poderosos é que deem atenção especial aos detalhes da transformação pela qual o personagem está passando, principalmente em relação à sua força e a necessidade de, ainda assim, dar peso aos conflitos da trama. É perfeitamente possível criar personagens fortes sem sacrificar a profundidade psicológica e a capacidade de se conectar com o leitor, mas isso demandará muito mais trabalho.
Algumas estratégias que eu sugeriria para evitar alguns dos problemas que enfrentei na minha novel e que está associada ao arquétipo desse tipo personagem seriam:
- Desenvolvimento gradual: Em vez de apresentar o protagonista como um ser supremo em poucos capítulos, é melhor mostrar a sua evolução ao longo de vários, cadenciando os acontecimentos e dando maior longevidade para a história. A revelação gradual das habilidades e da personalidade do personagem mantém a narrativa interessante por mais tempo.
- Vulnerabilidade: É fundamental mostrar que o protagonista também possui suas fraquezas. Esse é um fato que, por exemplo, transforma o Batman num personagem muito mais interessante que o Superman para a maioria das pessoas. Momentos de dúvida, medo e sofrimento facilitam a conexão com o leitor, pois mostra que o protagonista ainda é humano.
- Poder da amizade: Tudo bem, essa é uma velha piada entre leitores de mangás, mas a construção de relacionamentos com outros personagens realmente humaniza o protagonista e adiciona camadas de complexidade à sua personalidade.
Algo que senti falta em Solo Leveling foi a pouca conexão que o Sung Jin-woo criava com seus amigos e aliados (apesar de eu estar consciente de que o título da história, literalmente, significava “Evoluindo Sozinho”). De qualquer modo, bons aliados sempre deixarão a jornada do protagonista mais divertida.
- Desafios reais: Crie conflitos que realmente ameacem o protagonista e que o force a se superar, mas não resolva tudo somente base da força. Inventar maneiras de o personagem se superar com estratégia e inteligência sempre será interessante de acompanhar. A superação de grandes obstáculos gera um senso de realização tanto para o personagem quanto para o leitor.
Você também pode acrescentar problemas impossíveis de o protagonista resolver na base da força, como um familiar enfrentando uma doença incurável. Isso o obrigará a agir diferente.
Conclusão
A personalidade dos protagonistas em mangás e animes reflete as transformações sociais e culturais em que vivemos, dessa forma, a figura do Fodão Sombrio, presente em obras como Solo Leveling, parece responder a um anseio pelo poder e pela liberdade que ele nos traz dentro de um mundo cada vez mais exigente e caótico. No entanto, a criação impensada desse tipo de personagem pode levar autores a escrever narrativas previsíveis e protagonistas unidimensionais se não trabalharem com cuidado.
A chave para um bom protagonista do tipo está no equilíbrio: é preciso encontrar um ponto de harmonia entre a força do personagem e a sua vulnerabilidade; entre a grandiosidade de suas ações e a profundidade de suas emoções. Um protagonista cujo único traço se resume ao quanto ele é “foda” pode ser atraente de se escrever no início, mas acompanhar a sua evolução sem perder o que o tornava interessante lá no início da história é muito mais recompensador para quem lê.
Além disso, a identificação com um personagem pode ir muito além da sua mera força física: a capacidade de ele superar obstáculos, de crescer como pessoa e de construir relacionamentos significativos com seus amigos e aliados é o que verdadeiramente o torna memorável.
Em um mundo cada vez mais rápido e ansioso, a busca por histórias que nos permitam escapar da realidade e nos transportar para outros mundos se tornará cada vez mais requisitada.
No fim do dia, tudo o que os leitores querem (e até mesmo nós, autores) é se parecer um pouco mais o Sung Jin-woo para derrotar os vilões do cotidiano com as mãos dentro dos bolsos.