Localização Importa: O Brasil Como Você Nunca Escreveu
Vamos bater um papo sério sobre um tema que anda me incomodando: a superficialidade na escolha de cenários, culturas e etnias em histórias ambientadas no nosso mundo real.
Tenho visto uma enxurrada de obras brasileiras que simplesmente pegam elementos de culturas asiáticas sem o menor critério ou conhecimento profundo. É como se assistir a meia dúzia de animes ou doramas fosse o suficiente para entender séculos de história e tradição. E o pior: enquanto isso, o Brasil, com sua riqueza cultural imensa, é deixado de lado. Vamos destrinchar isso.
A questão aqui não é que um autor brasileiro não possa escrever uma história ambientada na China, na Coreia ou no Japão. Claro que pode! A literatura é, antes de tudo, um exercício de imaginação e criatividade. Mas quando essa escolha se baseia apenas em um fascínio superficial por estética, culinária e mitologia, o resultado geralmente é um cenário de papelão — aquele tipo de ambientação que até tem nomes e cenários estrangeiros, mas carece de substância e autenticidade. A cultura vira um acessório estilístico, e os personagens, meros ocidentais com nomes asiáticos gerados no Google Tradutor.
O que me deixa mais perplexo é como esse fenômeno se tornou comum. Com a popularização das webnovels chinesas e coreanas, dos animes, mangás e k-dramas, muitos escritores brasileiros estão absorvendo esses conteúdos sem um olhar crítico, tratando esses países como se fossem cenários padrão para qualquer tipo de história, independentemente do enredo. O problema não é gostar dessas produções — eu também gosto de muita coisa! O problema é transformar essa admiração em apropriação rasa, sem questionar se realmente faz sentido para a narrativa.
O Brasil, por outro lado, acaba sendo negligenciado. Mesmo com um território imenso, uma história rica e uma diversidade cultural gigantesca, muitos autores nacionais ainda hesitam em ambientar suas histórias aqui. Por quê? Será que é falta de interesse? Falta de pesquisa? Ou será que é o velho complexo de vira-lata, aquela sensação de que um enredo só é interessante se se passar no exterior? E olha que nem estou falando de histórias que exigem um setting estrangeiro por questões narrativas. Estou falando de histórias que poderiam funcionar perfeitamente bem em um contexto brasileiro, mas que, por algum motivo, insistem em se passar em Seul ou Tóquio, com personagens que comem kimchi ou andam de yukata sem nenhuma razão além do fetiche estético.
Se a gente parar para pensar, essa tendência não se limita às webnovels e light novels. O próprio mercado literário brasileiro, em parte, reforça essa mentalidade. Muitas editoras e leitores valorizam mais o que vem de fora, enquanto autores nacionais lutam para conseguir reconhecimento. O curioso é que, enquanto muitos brasileiros querem escrever histórias “orientais”, os próprios escritores chineses e coreanos estão explorando suas próprias raízes, tornando suas narrativas autênticas e cativantes para um público global. Estamos indo na contramão.
Portanto, este artigo não é um manifesto contra histórias ambientadas fora do Brasil. É um convite à reflexão. Vamos analisar por que tantos autores nacionais escolhem cenários estrangeiros sem critério, quais são as consequências dessa escolha e como podemos resgatar o valor da autenticidade na ficção. Bora aprofundar essa conversa?
1. A Ilusão da Familiaridade e a Escolha Irresponsável de Cenários
1.1. A globalização da mídia e a falsa sensação de conhecimento
A internet e o streaming mudaram drasticamente a forma como consumimos cultura. Antes, para ter contato com obras japonesas, chinesas ou coreanas, era preciso garimpar VHSs, recorrer a fãs que legendavam manualmente ou esperar que uma editora trouxesse algo para cá. Hoje, qualquer um pode assistir a um dorama coreano na Netflix, ler uma webnovel chinesa no celular ou mergulhar em uma enxurrada de animes e mangás sem sair do sofá. Essa acessibilidade é incrível, mas trouxe um efeito colateral: a ilusão da familiaridade.
Consumir uma obra estrangeira não significa compreender a cultura que a originou. A experiência que temos com um anime, por exemplo, é filtrada pelo viés narrativo daquela produção e pelas nossas próprias referências culturais. Quando um brasileiro assiste a Demon Slayer e vê personagens falando sobre honra e dever, ele pode associar esses conceitos a sua própria visão de moralidade, sem necessariamente entender o significado específico dessas palavras no contexto japonês.
O antropólogo Edward T. Hall (1976), em seu estudo sobre comunicação intercultural, propôs a ideia de high-context cultures (culturas de alto contexto) e low-context cultures (culturas de baixo contexto). Sociedades asiáticas, como Japão e China, tendem a ser de alto contexto, ou seja, muita informação cultural está implícita e não dita diretamente. Já sociedades ocidentais, como as do Brasil e dos EUA, são de baixo contexto, o que significa que tendemos a explicitar informações. Essa diferença afeta não só a comunicação do dia a dia, mas também a forma como histórias são contadas. Ou seja, mesmo que uma webnovel chinesa pareça fácil de entender, há nuances culturais que podem passar despercebidas para um leitor ocidental.
1.2. Consumir cultura não é o mesmo que entendê-la
Um dos erros mais comuns que escritores cometem é confundir exposição constante com conhecimento profundo. Se alguém assiste a dezenas de dramas coreanos e começa a reconhecer padrões — como o respeito hierárquico, a importância da comida nas interações sociais e a estrutura familiar rígida —, isso não significa que essa pessoa compreendeu verdadeiramente a sociedade coreana. O que ela tem é uma coleção de referências superficiais, muitas vezes romantizadas pelas próprias produções de entretenimento.
O professor Stuart Hall, um dos maiores teóricos dos Estudos Culturais, argumenta que a cultura não pode ser reduzida a um conjunto de símbolos e costumes facilmente replicáveis. A cultura é um processo vivo, cheio de disputas de significado, influenciado por contexto histórico, político e social. Ou seja, pegar elementos isolados e inseri-los numa história sem um entendimento real de seu significado pode resultar em um cenário artificial, que não passa de uma colagem de estereótipos.
1.3. Escolhas baseadas em Preferência Pessoal VS Critério Narrativo
E aqui chegamos a um ponto crucial: por que tantos escritores brasileiros escolhem cenários estrangeiros para suas histórias? Se formos analisar as justificativas mais comuns, elas geralmente giram em torno de gosto pessoal. “Gosto da arquitetura chinesa”, “Acho bonito os templos japoneses”, “A culinária coreana me atrai”. Essas preferências são válidas, mas não são suficientes para justificar uma ambientação.
Pense no impacto que o cenário tem em uma história. Um conto de fantasia ambientado em um vilarejo medieval europeu carrega consigo toda uma estrutura social que molda os personagens: a relação com a nobreza, o papel da religião, a economia agrária. Da mesma forma, uma história ambientada na China imperial deve refletir os sistemas de governo, as relações de classe e as crenças espirituais daquela época. Se a escolha do cenário não influencia o enredo e os personagens, então ele foi escolhido apenas por estética, e isso compromete a credibilidade da história.
O problema é que, muitas vezes, essa escolha se dá sem qualquer esforço real de pesquisa. Já vi histórias brasileiras ambientadas na China onde os personagens tinham nomes inventados, que não faziam sentido linguístico. Outros escritores colocam personagens coreanos em situações que jamais aconteceriam na Coreia real, simplesmente porque viram algo parecido em um k-drama e assumiram que era universal. Esse tipo de erro não só empobrece a narrativa, mas também reforça uma visão distorcida dessas culturas.
Se a ambientação não faz diferença para o desenvolvimento da história, então por que não escrever algo enraizado na própria cultura do autor? O Brasil tem cidades com arquiteturas impressionantes, lendas tão ricas quanto as mitologias orientais e costumes que poderiam render histórias fantásticas. O problema não é a falta de material, mas sim a falta de reconhecimento do próprio potencial criativo nacional.
E isso nos leva a uma questão maior: como podemos incentivar escolhas mais autênticas na escrita? É isso que vamos explorar nas próximas seções.
2. A Construção do Espaço Narrativo: Muito Além do “Gosto Pessoal”
A ambientação de uma história é tão fundamental quanto seus personagens e enredo. Um local bem escolhido pode amplificar conflitos, aprofundar personagens e dar autenticidade à narrativa. No entanto, muitos escritores tratam o espaço narrativo como um detalhe secundário, optando por cenários sem critério ou apego real ao que a história precisa. Vamos abordar o que realmente importa na escolha do local e como usá-lo a favor da trama.
2.1. Critérios para escolher um local relevante para sua história
Muitos escritores iniciantes escolhem um local apenas por “achar bonito” ou porque consomem mídia desse país. Mas o espaço narrativo precisa ser mais do que um cartão-postal. Ele deve ser um organismo vivo que interage com os personagens, influencia suas decisões e molda a trama.
- O local como um organismo vivo que afeta o enredo, e não um simples pano de fundo
Um cenário bem utilizado afeta diretamente os personagens. Pense em Cidade de Deus (Paulo Lins), onde a favela não é apenas o fundo da história, mas um elemento que influencia as escolhas, oportunidades e dificuldades dos protagonistas. Um mesmo personagem não teria a mesma trajetória se estivesse em um bairro nobre do Rio de Janeiro ou no interior do Maranhão. - A relação entre personagens e seu ambiente: evitar deslocamento gratuito
Um erro comum é criar personagens deslocados sem motivo plausível. Por que sua protagonista brasileira nascida e criada no interior de Minas Gerais estudaria em um colégio japonês tradicional sem ter ascendência japonesa ou razão narrativa forte para isso? Autores muitas vezes jogam seus personagens em contextos sem pensar nas adaptações e no realismo necessário. - Quando faz sentido usar um local estrangeiro e quando é só fetichização cultural
Há histórias que precisam de um local específico. Se você está escrevendo sobre o Período Edo no Japão ou a Revolução Francesa, o espaço não é opcional, é histórico. Mas se seu romance contemporâneo não depende de um local estrangeiro, por que não ambientá-lo no Brasil? Muitos autores usam Tóquio, Seul ou Pequim apenas porque viram em séries e animes, mas sem qualquer razão para a história se passar lá. Se você precisa de um cenário genérico em que não vai se empenhar muito nisso, faça a história acontecer num Brasil genérico de forma totalmente implícita, e tá tudo bem.
2.2. Como o local pode elevar a narrativa e o desenvolvimento de personagens
O ambiente de uma história não serve apenas para “ambientar”, mas para criar camadas narrativas. O local pode ser um catalisador para decisões, desafios e crescimento dos personagens.
- Espaços que influenciam psicologicamente os personagens
Não é a mesma coisa crescer em um bairro violento e crescer em uma região de classe alta. Além da segurança, os códigos sociais, aspirações e dificuldades diárias mudam completamente. Em O Cortiço (Aluísio Azevedo), a estrutura física do cortiço influencia diretamente as relações humanas e a degradação moral dos personagens. Pense em como sua narrativa pode se beneficiar desse tipo de construção. - Cidades e países como entidades narrativas
Há locais que têm história, política e geografia tão marcantes que se tornam parte ativa da trama. Gotham City, em Batman, é um exemplo: a corrupção, a violência e a desigualdade fazem da cidade quase um personagem. No mundo real, uma história ambientada no Rio de Janeiro pode usar desde favelas até Copacabana para contrastar desigualdades e criar tensão social na narrativa. - Quando um local específico cria oportunidades narrativas únicas que outro não criaria
Algumas histórias exigem espaços específicos para funcionarem. Uma trama sobre garimpo ilegal, por exemplo, precisa do contexto amazônico ou de outra região mineradora para ser autêntica. Um romance policial que explora a dinâmica entre a milícia e o tráfico faz mais sentido em uma cidade como o Rio de Janeiro do que em Florianópolis. O espaço precisa servir à história e não ser apenas uma escolha aleatória.
Com isso, vemos que a escolha do espaço narrativo não pode ser feita no achismo. Ela tem que ter peso, coerência e relevância dentro da trama. A seguir, vamos explorar erros comuns e como evitá-los ao construir histórias mais autênticas e envolventes.
3. O Efeito “Cultura de Segunda Mão” e os Erros na Representação Cultural
A globalização fez com que diversas culturas fossem amplamente difundidas, mas também gerou um problema sério: a cultura de segunda mão. Ou seja, quando um autor não vivenciou uma cultura nem a estudou a fundo, mas se sente familiarizado apenas porque consumiu muitas obras de ficção sobre ela. Esse fenômeno gera representações superficiais, cheias de clichês e distorções. Vamos dissecar alguns erros comuns.
3.1. O problema da apropriação sem compreensão
Um dos erros mais frequentes em histórias brasileiras ambientadas em países asiáticos é o uso de elementos culturais apenas pelo seu apelo visual ou exótico, sem entender o significado por trás deles.
- Símbolos e estereótipos vazios
Muitos escritores utilizam símbolos asiáticos sem saber seu real significado. Por exemplo, o uso de katanas em histórias que não fazem sentido dentro do contexto histórico ou social. Ou a romantização de samurais sem compreender os valores do bushidō. - Elementos culturais como decoração
Kimchi, cerimônias do chá, templos budistas, yukatas… Esses elementos são frequentemente jogados nas narrativas apenas para criar uma “atmosfera asiática”, mas sem função real na trama. O problema não é usá-los, mas sim usá-los sem propósito.
3.2. Erros clássicos na escolha de nomes, costumes e tradições
Nomes e tradições são aspectos fundamentais de qualquer cultura, mas frequentemente são tratados de forma descuidada.
- O problema do Google Tradutor
Seus personagens japoneses têm nomes como “Tatsuya Kaze” (onde “Kaze” significa “vento” porque o protagonista controla o vento)? Isso não faz sentido na lógica japonesa de nomeação. Muitos escritores pegam palavras soltas em tradutores automáticos sem pesquisar se são usadas como nomes reais. Por que no Brasil daríamos o nome de “Vento” a alguém? Não faz sentido nem na nossa língua! Já vi “Kuro” e “Shiro” também. Por que o nome da pessoa é uma cor?! Que absurdo! - Falta de pesquisa sobre costumes
Templos genéricos, samurais vivendo em períodos históricos errados, festivais mal representados… Pequenos deslizes tornam a história artificial. Se você vai usar um elemento cultural, pesquise fontes confiáveis.
3.3. “Localização aleatória”: quando tudo parece copiado de outra obra
O problema de muitos autores iniciantes é que suas histórias não parecem homenagens a uma cultura, mas sim cópias mal disfarçadas de outras obras.
- Histórias brasileiras com cenários coreanos/japoneses/chineses sem justificativa
É comum ver tramas ambientadas na Coreia do Sul onde os personagens só comem kimchi e falam sobre K-pop, sem nenhuma profundidade cultural. Isso reduz uma cultura riquíssima a um punhado de referências óbvias. Fazer os personagens falarem “oppa” ou “onii-chan” em meio a textos em português não torna aquela história com tom asiático; só é caricato mesmo. - Distorção causada pelo consumo de mídia
Animes, K-dramas e novels de cultivo criaram uma visão idealizada e simplificada de culturas asiáticas. Muitos escritores replicam essa visão sem notar que estão distorcendo a realidade. - Ausência de pesquisa e fontes autênticas
Se você quer escrever sobre uma cultura que não é a sua, o mínimo é buscar fontes primárias: livros acadêmicos, entrevistas com nativos, material produzido por quem vive essa cultura.
Na próxima seção, vamos discutir como o Brasil, apesar de sua riqueza cultural e diversidade, é subestimado como cenário literário. Veremos como explorá-lo de maneira autêntica pode trazer profundidade e originalidade às histórias.
4. O Brasil Como um Cenário Subestimado e Mal Aproveitado
Parece que, quando o assunto é ficção, o Brasil só entra na história se for para retratar violência, miséria ou alguma visão estereotipada. Tem gente que acha que escrever uma história aqui tira o “charme” da narrativa, como se o país não tivesse complexidade suficiente pra segurar um enredo épico.
E aí o que acontece? Todo mundo correndo pra ambientar suas histórias na Coreia do Sul, no Japão, nos Estados Unidos — países que conhecem só por dorama, anime e filme de ação. Enquanto isso, o Brasil continua sendo o grande esquecido da ficção nacional, tratado como pano de fundo só quando é pra mostrar violência ou exotismo barato.
Agora me diz: se o Brasil não é interessante, por que tem tanto gringo fascinado por ele? Por que um gringo olha pra Amazônia, pro sertão ou até pras nossas cidades caóticas e vê um palco perfeito pra contar histórias? Enquanto isso, nós, que nascemos aqui, ficamos com receio de usar o próprio país como cenário. Essa seção é pra gente encarar essa realidade de frente e entender que o Brasil não só pode, mas deve ser usado como ambiente de histórias memoráveis.
4.1. O erro de menosprezar nosso próprio país
O Brasil é um país do tamanho de um continente. Você pode cruzar o mapa e encontrar de tudo: montanhas gigantes, cavernas misteriosas, rios que mais parecem oceanos, cidades que respiram história, florestas densas onde a civilização moderna nunca pisou. Mas se você perguntar pra um escritor brasileiro onde ele quer ambientar a história dele, a resposta geralmente é alguma cidade fictícia que parece Nova York ou um vilarejo medieval inspirado na Europa.
Isso acontece porque crescemos bombardeados por narrativas que reduzem o Brasil a poucos estereótipos: favela violenta, floresta intocada ou cidade caótica. Raramente vemos histórias que exploram o que existe entre esses extremos. O Brasil real, com sua mistura única de culturas, sotaques e histórias, continua esquecido. E isso é um erro que precisamos corrigir.
Quer um exemplo? Quando a Netflix lançou Sense8, usaram São Paulo de um jeito que parecia que a cidade inteira era um clipe da Parada LGBTQIA+. Beleza, representatividade é importante, mas São Paulo é muito mais do que isso. É uma metrópole com camadas culturais absurdas, histórias de imigração, crime organizado, arte de rua que rivaliza com Berlim. E quantos escritores brasileiros realmente exploram isso nas suas histórias?
O estrangeiro olha pro Brasil e vê um universo de possibilidades. Nós olhamos e vemos só um “lugar qualquer”. Tá na hora de mudar essa visão.
4.2. Como criar histórias que fazem justiça ao Brasil sem cair em clichês
O medo do clichê paralisa muita gente. “Ah, mas se eu escrever uma história no Brasil, vão achar que é novela da Globo.” Ok, mas se ambientar no Japão sem entender nada da cultura japonesa, sua história não vai parecer um anime genérico? O problema não é onde você escreve, mas como você escreve.
Aqui vão algumas formas de fugir dos clichês e criar histórias que fazem justiça ao Brasil:
- Pare de limitar o Brasil a três cenários. Nosso país não é só favela, carnaval e Amazônia. Que tal uma ficção científica cyberpunk ambientada no Porto Digital de Recife? Um suspense político no Congresso Nacional? Um terror psicológico numa cidadezinha fantasma do interior de Minas Gerais?
- Pesquise de verdade. Se você quer falar de uma cultura brasileira que não é a sua, vá além da Wikipédia. Converse com quem vive aquilo, leia fontes primárias, entenda os detalhes. Se não fizer isso, sua história corre o risco de ser só um enfeite sem alma.
- Misture tradição e modernidade. O Brasil é um país onde uma cidade do interior pode ter uma festa religiosa centenária ao mesmo tempo que jovens estão jogando no servidor brasileiro de Valorant. Essa dualidade dá um tempero único às histórias.
- Aproveite a diversidade regional. A cultura brasileira é gigantesca. O que funciona numa história ambientada em Florianópolis não vai funcionar igual em Belém. O que faz sentido no Pantanal pode ser completamente diferente do que acontece no sertão nordestino. Se um autor estrangeiro se dá ao trabalho de diferenciar Londres de Manchester, por que um autor brasileiro não pode diferenciar Recife de Curitiba?
Escrever sobre o Brasil não significa jogar um Curupira na história e chamar de “elemento nacional”. É sobre criar narrativas que tratam nossa cultura com respeito e autenticidade.
4.3. Oportunidades narrativas únicas no Brasil que são ignoradas
Agora vamos ao que interessa: que tipo de história só poderia ser contada no Brasil, mas quase ninguém escreve?
- Eventos históricos que dariam roteiros de cinema
A Revolta da Chibata tem um protagonista mais carismático que muito herói de ficção. O Cangaço daria uma série melhor que Peaky Blinders. A Confederação do Equador foi um Game of Thrones da vida real. Mas quem tá escrevendo sobre isso? Quase ninguém. - Lendas urbanas e mitologias vivas
O folclore brasileiro foi transformado em coisa de criança, mas as lendas urbanas modernas mostram que nosso imaginário ainda está muito vivo. O que diferencia a Loira do Banheiro da Bloody Mary? O Homem do Saco de um serial killer europeu? Tem uma riqueza absurda aí, esperando pra ser explorada. E quanto às cosmologias indígenas, elas não são apenas “lendas antigas” – pra muitos povos, são parte da espiritualidade viva. O problema é que, quando aparecem na ficção, são tratadas como fantasia exótica e não como algo real. Quem se propõe a escrever sobre isso precisa entender que há um respeito necessário nessa abordagem. - A mistura cultural brasileira como fonte de histórias épicas
O Brasil é um dos poucos lugares do mundo onde crenças africanas, indígenas, europeias e asiáticas convivem e se misturam. O resultado disso? Um caldeirão de possibilidades narrativas. E não, não precisa transformar tudo em “misticismo exótico”. Você pode usar isso para criar narrativas mais autênticas, onde personagens carregam influências culturais diversas de forma natural.
O que falta para mais escritores brasileiros enxergarem o Brasil como um palco de grandes histórias? Talvez seja só uma mudança de perspectiva. Se estrangeiros já perceberam que o Brasil é um território narrativo cheio de potencial, tá na hora da gente fazer o mesmo.
5. Como Pesquisar Profundamente para Criar um Cenário Autêntico
Criar um cenário realista exige mais do que uma pesquisa superficial. Se o objetivo é ambientar sua história no mundo real, seja no Brasil ou fora dele, a profundidade da pesquisa pode ser o diferencial entre um universo convincente e uma ambientação rasa, cheia de informações duvidosas. Afinal, se o leitor sentir que o autor não domina o espaço que criou, a imersão se quebra na hora.
Essa pesquisa envolve desde geografia e cultura até detalhes que parecem pequenos, mas fazem toda a diferença — como a distância real entre dois lugares e o tempo que se levaria para percorrê-los, a maneira como as pessoas falam em determinada região ou o impacto histórico de eventos locais.
Vamos ver como aprofundar essa pesquisa e evitar erros que fazem até um leitor leigo torcer o nariz.
5.1. Métodos de pesquisa além da Wikipédia e do Google Tradutor
Muitos escritores acham que pesquisar é abrir a Wikipédia, ler um ou dois artigos e seguir em frente. Só que isso gera aqueles erros clássicos de ambientação, como chamar feijoada de “prato típico do Brasil colonial” (quando, na verdade, como conhecemos hoje, ela é do século XIX) ou achar que o Japão feudal tinha ninjas pulando de telhado em telhado o tempo todo.
Aqui estão alguns métodos que ajudam a ir além da pesquisa superficial:
- Entrevistas com nativos e especialistas
Nada substitui conversar com alguém que vive ou estudou profundamente o local que você quer retratar. Se sua história se passa em uma cidade do interior do Pará, um paraense vai te dar informações que nenhum artigo online conseguiria. Especialistas, como historiadores e urbanistas, também podem oferecer insights valiosos. - Leitura de literatura local para entender nuances culturais
Se quer ambientar uma história no Recife, por que não ler autores recifenses para entender a cidade além dos cartões-postais? Livros locais capturam não só o espaço físico, mas também o jeito de falar, os conflitos sociais e o cotidiano de um jeito que uma pesquisa fria não consegue. - Fontes acadêmicas e documentários como base sólida
Documentários bem produzidos e artigos acadêmicos trazem uma profundidade histórica e cultural que raramente aparece na mídia popular. Se quer escrever sobre um tema mais denso, como quilombos contemporâneos ou a influência do cangaço na cultura nordestina, recorrer a esse tipo de fonte evita distorções. - Viagens e imersão na cultura, quando possível
Se tiver a chance de visitar o local onde sua história se passa, melhor ainda. Observar como as pessoas vivem, como interagem, os cheiros e sons das ruas… tudo isso gera uma riqueza de detalhes que faz toda a diferença. Mas mesmo que viajar não seja viável, hoje temos recursos como Google Street View, vídeos de turistas e relatos de moradores em redes sociais.
5.2. Construindo personagens que realmente pertencem ao espaço narrativo
De nada adianta ter um cenário detalhado se os personagens parecem deslocados, como se tivessem sido teletransportados para lá sem nunca interagir com o ambiente. Para criar personagens que realmente pertencem ao espaço narrativo, é preciso considerar:
- A relação entre idioma, sotaque e personalidade
Nem todo carioca fala “mano”, nem todo paulista fala “beleza”, e nem todo nordestino usa “oxente” o tempo todo. O jeito de falar muda conforme a região, a classe social e até o contexto da conversa. Pesquisar expressões e formas de comunicação locais evita diálogos artificiais e caricaturais. - Como criar diálogos realistas sem cair em caricaturas
O perigo de exagerar sotaques e gírias é criar personagens que parecem mais paródias do que gente de verdade. O ideal é equilibrar: um toque de regionalismo para dar autenticidade, sem tornar a leitura cansativa ou forçada. - Adaptando conflitos e desafios à realidade do cenário escolhido
O ambiente onde o personagem vive afeta diretamente seus dilemas e aspirações. Um jovem que cresce no sertão nordestino e sonha em estudar medicina em São Paulo vai ter desafios completamente diferentes de um garoto da zona sul do Rio de Janeiro que quer seguir carreira na música. A narrativa precisa refletir essas diferenças.
5.3. A importância da precisão na geografia e no tempo de viagem
Um erro comum em histórias é tratar deslocamentos como se fossem irrelevantes. Personagens atravessam cidades inteiras em minutos, viajam entre estados como se estivessem pegando um Uber, e cavalos correm distâncias absurdas sem descanso. Isso pode parecer detalhe, mas afeta a credibilidade da narrativa.
Vou deixar aqui um bônus com alguns dados úteis para evitar esses erros:
- Dentro das cidades modernas, um carro demora cerca do dobro do número de quilômetros para chegar ao destino. Ou seja, 10 km levam uns 20 minutos para serem percorridos. Já uma moto, sendo mais ágil no trânsito, levaria cerca de 15 minutos para a mesma distância.
- Nas rodovias, a conta fica mais simples: a cada 100 km percorridos, leva-se cerca de 1 hora de viagem, considerando uma velocidade de cruzeiro comum.
- A pé, um ser humano caminha entre 4 a 5 km/h, percorrendo até 30 km por dia. Ou seja, andar 10 km leva cerca de 2h30. Isso é essencial para histórias em que os personagens dependem de longas caminhadas.
- Na Era Medieval, cavaleiros podiam correr em média 40 km por dia, enquanto uma carroça ou carruagem puxada por dois cavalos fazia entre 50 a 60 km/dia. Se alguém precisasse viajar 400 km, levaria uma semana de carroça sem paradas, mas o mais realista seria contar pelo menos 9 dias, incluindo descansos para os cavalos.
Esses detalhes parecem técnicos, mas fazem toda a diferença para quem gosta de um mundo bem construído. Além disso, permitem que o leitor tenha uma noção espacial realista da história, criando um senso de imersão muito maior.
5.4. Descrevendo locais reais como uma janela para o mundo
Outro aspecto fundamental na escrita de cenários realistas é lembrar que o leitor pode nunca ter visitado o local descrito. Seja um ponto turístico famoso ou um bairro desconhecido, a literatura tem o poder de transportar o leitor para lugares que ele talvez nunca veja pessoalmente.
- O impacto de descrever um local real com detalhes vivos
Quando um escritor descreve um beco do Pelourinho ou uma rua específica de Curitiba com riqueza de detalhes, ele não está só pintando um cenário. Ele está convidando o leitor a passear por aquele lugar, sentir o cheiro do café recém-passado na esquina, ouvir o burburinho das feiras ou até perceber a forma como a luz incide sobre os prédios antigos. - A diferença entre descrever e simplesmente citar um lugar
Dizer que um personagem “passou pela Avenida Paulista” não gera impacto. Agora, descrever como ele vê os edifícios espelhados, as multidões apressadas, o barulho do metrô ecoando ao fundo… isso traz o cenário à vida. - A literatura como forma de turismo fictício
Um leitor pode nunca ter ido a Ouro Preto, mas se a narrativa souber capturar o peso histórico das ruas de pedra e das igrejas barrocas, ele vai sentir que já esteve lá. E essa é a verdadeira mágica de um bom cenário: fazer com que o leitor viaje sem sair do lugar.
Como a Localização Pode Ser um Diferencial em Sua História
Escrever é um ato de criação, mas também de responsabilidade. Quando escolhemos um cenário para nossa história, não estamos apenas jogando um monte de prédios, ruas e paisagens no fundo da narrativa. Estamos decidindo o tom, o clima, a cultura e até os desafios que nossos personagens vão enfrentar. A localização não é um detalhe. É uma das engrenagens que fazem a história funcionar.
E olha que coisa linda: o mundo inteiro está aí, esperando para ser explorado pelas suas palavras. Você pode situar sua trama onde quiser — desde que faça isso com o respeito e a pesquisa que cada lugar merece. Se for ambientar no Japão, nos Estados Unidos, na Coreia do Sul, que seja por um motivo narrativo forte, e não só porque “fica mais legal” ou porque viu algo parecido num anime ou dorama. E, principalmente, que seja feito com autenticidade, sem cair em caricaturas.
Agora, e o Brasil? Quantas histórias incríveis ainda não foram contadas porque subestimamos o potencial do nosso próprio país? Quantos cenários brasileiros poderiam ser palco de narrativas épicas, emocionantes e inesquecíveis? Não estou dizendo que todo mundo é obrigado a escrever sobre o Brasil — não é isso. Mas se você nunca nem considerou essa possibilidade, talvez valha a pena pensar no porquê. Será que é medo de parecer “menos interessante”? Será que é por desconhecimento?
Se for falta de familiaridade, a solução está na pesquisa. Se for receio de parecer caricato, a solução está no cuidado na escrita. Se for um pensamento inconsciente de que o Brasil “não dá uma boa história”, bom… essa é uma visão que já passou da hora de mudar.
E olha que temos exemplos fantásticos de escritores que fizeram isso de forma incrível.
- Farme!, de Zunnichi,
- Guerra: O Legado do Sangue, de Alonso Allen,
- Venante, de Rose Kethen,
- Druida Lendário, de Raphael Fiamoncini,
- Santo Renegado e Olhos Que Veem no Escuro, de Tomas Rohga, e
- Capivara Samurai, de George Gonb,
nos jogam em tramas intensas e bem construídas dentro de uma ambientação, veja só, NACIONAL.
Essas obras provam que a ambientação brasileira não só funciona, como pode ser um diferencial narrativo poderoso. São histórias que não tentam ser cópias genéricas de sucessos estrangeiros — elas criam algo único, com um DNA próprio.
O que eu quero que você leve deste artigo não é uma regra proibitiva, do tipo “pare de ambientar suas histórias no exterior”. Não. O que eu quero é que você veja a riqueza de possibilidades que tem nas mãos. Que você perceba que um cenário bem construído pode transformar uma história qualquer em uma experiência inesquecível para o leitor. Que você entenda que respeitar e estudar o local onde sua trama acontece não é um fardo, mas uma oportunidade de fazer algo verdadeiramente especial.
Seja no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, o importante é dar ao cenário o valor que ele merece. Porque uma boa história não acontece no vácuo — ela precisa de um chão sólido para pisar. E você, como escritor, tem o poder de construir esse chão da forma mais rica e autêntica possível.
Eu agradeço imensamente por ter lido meu artigo que fiz com carinho e eu recomendo que você assista também o vídeo da NovelCastBR no nosso canal do Youtube sobre Brasilidade onde eu participo também. Te aguardo nos próximos! Tchau!